"Preciso que faça um favor a este velho minha querida Isabor” -disse-me ele com aqueles olhinhos divertidos que há muito eu não via e já andava a sentir aquela saudade que plange a alma da gente. Parecendo notar em mim um misto de surpresa e pânico, um quase sorriso juntou-se ao olhar e vislumbrei naquele rosto trincado pelas rugas e pela dor uma propositada galhofaria. Conhecendo Josef como conhecia, sabia de antemão que o tal favor me custaria uma queima substancial de neurônios e energia. O que viria a seguir?
Minha querida, não posso ir desta para a outra sem saborear um Cohiba Behike, pois!? Temos ainda na adega uma última garrafa de Sauvignon, não temos? Ou, poderia me preparar uma sopa aveludada de castanhas com aipo e trufas brancas de Alba?
E acham vocês que adiantaria eu argumentar com a mais lógica das lógicas existentes? - Josef, os charutos não existem mais, foi uma edição limitada comemorativa.Quanto às trufas brancas de Alba Josef, sabe que é impossível no momento conseguir uma única grama dessa iguaria! Não conseguiria nem que eu fosse um dos porcos farejadores a ganhar abençoados 500 euros/hora para isso!
Ele me olhava, me olhava e nada dizia. Tremi. Desconcertei-me. A porta do quarto encontrava-se entreaberta e eu via a escada que dava acesso ao andar inferior. De súbito me veio uma vontade de reviver os tempos de minha infância, descer escorregando pelo corrimão gritando feito uma louca, encontrar a porta de saída e me perder no branco do dia coberto de neve. Estarrecida e tentando disfarçar meu desconforto olhei bem nos olhos dele e disse categoricamente as palavras : “PEÇA E FAREI”, mesmo sabendo que me arrependeria quase que imediatamente de as ter dito. Não posso dizer com certeza quantos minutos se passaram até vir a resposta, mesmo porque só pode contar o tempo quem vive,quem não respira não vive, eu morri temporariamente aí.
- Compota de tangerinas andam a dar-me água na boca, podes?-
Estávamos no inverno polônes, se é que me entendem, e além do que eu nunca havia feito uma compota antes, nem imaginava por onde começar. Mas como sempre foi entre mim e ele, ainda que com grandes sacrifícios todos os desejos eram atendidos. Uma questão de certo amor, um pacto de um genuíno e extraordinário amor. Pus-me em campo prometendo a mim mesma trocar parte da minha vida por meia dúzia das frutinhas. Havia na vila um mercado, um "empório", reposteiro da minha esperança que foi logo maculado pelo velho dono: NÃO, NÃO TEMOS! Procurei por tangerinas como se as mesmas fossem fugitivas da polícia. Subi a colina, me perdi em vielas, atravessei o rio na velha balsa e, nada, nada! Quando já me desesperava notei uma senhora com um cesto de laranjas e me veio a ideia: farei uma compota de laranjas, farei! Nunca eu havia trapaceado antes com ele a não ser no jogo de cartas. Coisa esta que não me colocava como uma bandida pois era preciso, visto que o gaiato assim o merecia. De posse das "tangeranjas" adquiri essência de tangerinas, arregacei as mangas e fiz-me acompanhar de um livro de receitas e de algumas rezas aprendidas com um velho índio quechua (Huanca,amigo que fiz em uma viagem junto de Josef ao Peru). Pronto, agora sim ele vai ver que não me acovardo facilmente!
Quatro horas depois eu e a compoteira juntas nos apresentamos a ele. Confesso que com um orgulho meio falso, mas orgulho. Ele olhou para ela, olhou para mim, cheirou o ar, voltou a cheirar e disse: esperas o que para servir-me? Não se fazendo de rogado comeu com uma ferocidade quase animal, a princípio como a matar uma fome de vida. Saciada a fome de tangerinas senti que ele ia começar a degustar laranjas. Temi, suei, desviei o olhar inúmeras vezes temerosa de ser pega em fragrante delito. Com movimentos leves uma vez que as frutas havia se acabado ele começou a enfiar o dedo na compoteira, encharcá-lo da calda e levá-lo à boca. Isso tantas e tantas vezes começando a me enervar. O ritual simples e inocente parecia a mim um macabro filme de terror. Certo exagero há no que disse, bem o sei, mas quem conheceu Josef não ousaria desmentir-me. Ele, não se abalando, continuava, continuava.
Dissimuladamente “resolveu” perceber meu descontentamento, parou, olhou-me com olhos de um azul profundo e com as mãos encarquilhadas e ainda sujas fez um desenho no ar que até hoje não compreendi. Com uma calma surpreendente que até o vento fustigante fez uma tentativa de ser brisa disse-me: “vivi" 86 anos e nunca havia comido compota de laranjas. Vejo agora o quão tolo fui ao preferir a de tangerinas. Não havia me dado conta que estamos em novembro. Tangerinas são mulheres vaidosas, soberbas, só nos amam de maio a setembro, e aqui na Polônia não permanecem nem por este tempo. Já as laranjas minha querida, são mulheres de regalo, uns mimos da natureza; entendem como ninguém que não há estação do amor ou estação para amar. Sempre a nos proteger no inverno, nos refrescar no verão, nos acalentar no outono e, na primavera (a melhor delas), abrem suas flores brancas deixando-as ao alcance de nossos sentidos de homem. Laranjas minha querida, são safadinhas, dão o ano inteiro, principalmente as pêras!”.