sábado, 14 de novembro de 2009

DESABAFA DESDEMONA ... " Eu e Fernando Savater"

"Esta vai ser uma noite extraordinariamente ditosa.Quero voltar a ser feliz até á indecência, como antes. Ah!!! quantos planos não tive que arquitetar,quantos cochichos com minha boa e fiel Emília. (...) Mas esta noite vou finalmente cobrar a paga da minha astúcia, os juros do meu deslevo. Esta noite vou recuperar Otelo. Por que será que os homens têm sempre de se distrair de nós, por que preferem eles os estéreis enredos da política ou a brutalidade da guerra, por que são eles mais capazes de se abismarem numa discussão sobre a natureza das estrelas do que se perceberem no chamamento de uns olhos que tudo pedem, tudo pedem, pra sempre? Pois, quando se entregam deveras, ou quando nós acreditamos que se entregam deveras, podem fundir-nos em puro deleite.Mas cansam-se, distraem-se: são como que exteriores ao seu corpo, ás suas sensações, e só podem fartar-se de carne aos bocadinhos, durante breves guinadas de sensualidade que os deixam exaustos e aterrados. Logo a seguir fogem para o comércio ou para a metafísica. Para viver precisam esquecer a maior parte do dia de que estão vivos. Para sentir qualquer coisa precisam se convencer de que não sentem, mas que pensam ou calculam; para se atreverem a desejar o que realmente desejam, têm de se empaturrar em projetos tido por eles como úteis ou sublimes.Para serem capazes de ceder de vez em quando ao êxtase,têm de considerar como um simples desafogo entre duas empresas muito mais importantes, porque os compromete a muito longo prazo.
(...) Hei de resgatar Otelo,hei de fazê-lo voltar á razão. (... ) Fera explêndida,infatigável,nascido para os jogos do amor; o mouro (como todos o chamam), que me fez ver o quanto os jovens educados que me rodeavam não passavam de criaturinhas patéticas e insípidas.
(...) Desde que Otelo foi nomeado governador de Chipre, nada mais foi igual ao que era. Passa a vida preocupado,perde nossas noites a planejar o dia seguinte, e o dia seguinte a parlamentar com embaixadores turcos ou a interrogar prisioneiros.Converteu-se num magnífico príncipe do mediterrâneo cristão. Quanto a mim? Dedica-me uma rápida ternura, não mais é o saqueador das minhas noites. (...) Por isso tramei, mediante insinuações e falsos descuidos conseguimos eu, a boa Emília e o bom Iago, convencê-lo que ando a "namoricar" Cássio. Sei que isso o fará reagir, compreenderá os perigos de me deixar abandonada. (...) Perfumei-me para ele,vesti a mais transparente de minhas roupas de dormir, espero sua chegada, não tardará. (...) Eis que chega, aproxima-se do nosso leito, custa muito a mim fingir dormir. Invadiu-me agora uma humilde ansiedade, não sei, não sei! Inclinou-se sobre mim e sussura : " Eis aqui a causa! Eis aqui a causa, alma minha!...Permite-te que as não nomeie perante vós, castas estrelas! Eis aqui a causa..."